sexta-feira, março 06, 2015

Da honestidade vinda de quem menos se espera...

Não, não vou falar de políticos, nem de dirigentes de instituições financeiras que ainda hoje se estão a gozar das poupanças de uma vida de milhares de pessoas. Chega de falar desses!
Raio que os parta a todos!

Apetece-me falar deste vídeo, feito para testar a "honestidade" dos sem-abrigo.




Há quem diga que o vídeo foi encenado e que as reacções não são verdadeiras... Por experiência própria, não estou tão certa disso.

O sem-abrigo "estacionado" junto ao meu local de trabalho desde Agosto (já aqui mencionado neste post de Agosto), continua a surpreender-me. Ontem, quando lhe fui perguntar se precisava de alguma coisa (ele não pede, não aborda ninguém na rua, aguarda que lhe ofereçam) pediu-me um cigarro e perguntou:
- não tem lá nada que se beba?
- o que é que lhe apetece?
- se tiver lá água...
- ok, já lhe trago!

no regresso, entrego-lhe a água:
- então e você, não precisa de nada? (como já é habitual).
Ao que eu respondo:
- não, obrigada. Estou bem.
- olhe, não tenho muito, mas posso partilhar, tenho aqui uma sandes daquelas (diz, enquanto leva a mão ao lóbulo da orelha), o pão é de hoje e tudo, quer?

Na última volta das equipas de rua da Comunidade Vida e Paz que acompanhei, encontrámos um poeta. Dormitava no chão de blazer azul escuro, calça cinza e sapato de pele. Quando nos aproximámos, acordou de um estado de sonambolismo para a realidade.
E repetia lavado em lágrimas: "Tiraram-me tudo!"

De facto, não tinha outros pertences a não ser uma mochila com dois livros. Quando se acalmou fez questão de nos ler trechos de ambos os livros. Um de Isabel Allende, outro de Mário Vargas. Não fiquei com a certeza que estivesse a ler. Pareceu-me mais que fossem palavras de sua autoria, palavras daquele momento sobre o que lhe ia na alma e no peito, de tanto que as palavras que lhe brotavam descreverem a situação em que se encontrava.

Quando terminou, despediu-se de nós embevecido: "vocês são as minhas flores. O que seria de mim sem vocês?" Pouco ligou à comida que deixámos. Não foi sequer, esbaforido, espreitar o que estava dentro do saco. Apetecia-lhe falar e ser ouvido, apesar de lhe terem tirado tudo e não ter nada.

Em pequena era-me dito para não olhar para os sem-abrigo, para não deixar meter conversa... confesso que cresci evitando-os, desviando o olhar quando me cruzava com eles na rua, fingido que não os via. Uma das maneiras de não termos de lidar com a miséria é fingir que ela não existe.

Hoje olho nos olhos, abordo, questiono, ouço, dou e recebo. Hoje, não preciso deste vídeo para saber que a honestidade está onde menos se espera. Confio mais nestas pessoas do que em muitos que, apesar de abastados, nada mais têm para dar do que filha-putice.





4 comentários:

  1. Tal como tu, não tenho qualquer dúvida da honestidade de muitos marginalizados e, tal como tu, também a mim a vida me permitiu olhar com novos olhos o que antes fingia não ver. Gostei muito deste texto.

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    1. Tal como eu deves saber que eles nos deram uma lição de vida :-) obrigada pelas tuas palavras.

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