segunda-feira, setembro 19, 2016

Ser voluntário não é para todos

Não é fácil ser voluntário! Não basta ter vontade de ajudar alguém.

Porque não? Porque nem todos são seres humanos de olhos tristes e meigos que carecem de conforto, de apoio e de uma oportunidade.

Também os há duros, cansados da vida, refilões e agressivos, com tanta vergonha e revolta que não reconhecem o quanto precisam de nós.

Há quinze dias apanhei um fulano que reclamou que as sandes que distribuíamos estavam estragadas, que os bolos não estavam em condições, e que aquilo que eu estava a distribuir era comida que não se dava a um cão quanto mais a uma pessoa.

Achei estranho, mas pedi desculpa. Disse que desconhecia (pois só faço a entrega), mas que iria pedir à equipa responsável pelas sandes para ter isso em consideração. Respondeu-me que isso não ia mudar nada, e que se era para andar a entregar lanches daqueles mais valia eu ficar em casa.

Fiquei magoada, mas entendi a situação como uma insatisfação pontual, como um desabafo. Transmiti a reclamação no relatório interno para que da próxima vez não se repetisse, e segui o meu caminho.

Nesta última sexta-feira, quando me dirigi ao mesmo homem por volta da meia noite, reparei que estava no mesmo sítio, deitado no mesmo banco de jardim, todo coberto pelo saco cama, nem a cabeça se via. Imaginei-o a dormir. Quando assim é, quando se encontram a dormir, deixamos o saco em silêncio para não os acordar. Foi o que tentei fazer, até pelo avançado da hora. Como entendo que comida não se deixa no chão, tentei pousar o saco junto aos seus pés, em cima do banco de jardim onde dormia. Mandou um salto e sentou-se. Não sei qual dos dois ficou mais assustado.

Começou a disparatar comigo, que não era assim que se fazia, que não é para se deixar o saco assim de qualquer maneira.
-Isso não se faz! Diz-me ele.
- Peço desculpa se o assustei, não era essa a minha intenção. Pensei que estava a dormir e queria apenas deixar-lhe o saco para quando acordasse.
- A mim não me assustas que eu já passei por muito nesta vida. Mas não deixas assim o saco e vais-te embora..

(Mau Maria, queres confusão? Há 15 dias foram as sandes estragadas e que mais valia eu ficar em casa, agora é a maneira como eu deixo o saco?)

- Olhe, quer que deixe o saco ou não? Se não quer eu posso levar de volta...
- Olha para as tuas colegas (ambas em silêncio). Nenhuma delas fala assim! Tu só queres deixar o saco e ir embora. Não é assim que se faz. Olha para as tuas colegas e vê como elas são simpáticas.

Passei o saco à colega (bastante mais condescendente do que eu, confesso) e informei que me ia embora. A ele disse que tinha sido a última vez que lhe levaria comida, pois era a segunda vez que era mal-educado comigo. Disse-lhe textualmente: De mim, você não recebe mais nada!  Bolas, sou uma voluntária, não sou Madre Teresa de Calcutá.

Voltei para a carrinha e por momentos pensei que não valia a pena continuar: o que fazes tu aqui, pá? Fica mas é em casa, no sofá, com a tua família, a ver filmes e séries de enfiada.

Pela primeira vez, em quase dois anos decorridos desde que abracei este projecto com a Comunidade Vida e Paz, apeteceu-me bater com a porta. Fui bombardeada por pensamentos como "não estou para isto", "não volto mais", "não foi para isto que me tornei voluntária".

Mas depois, com mais calma vem a certeza de que não me posso deitar abaixo por uma única pessoa. Não é um homem demasiado amargurado com a vida que me vai fazer abandonar os sorrisos rasgados e os obrigados sinceros dos restantes. Tais sorrisos valem fortunas, sabem-me a imensidão, tornam-me grande e forte. São eles que me motivam a continuar a fazer isto com amor.

Num panorama de centenas de pessoas sem-abrigo que ajudamos quinzenalmente, a sua maioria são-nos efectivamente gratos. É nesses que eu tenho de me focar.

Pode ser que um dia ele aprenda que mesmo não precisando, não temos o direito de maltratar ninguém, quanto mais quando precisamos.

Um grande bem-haja a todos os meus colegas da Volta B!





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