Cresci num bairro pequeno nos arredores de Lisboa, onde ao
final do dia saía da escola e percorria a pé o caminho por entre uma comunidade cigana e um chafariz até ao restaurante dos meus pais. Grande parte da minha infância e adolescência foi
passada nesse restaurante.
Em terra de comunistas, o meu pai ganhou
a alcunha de “o americano”, pois tinha amealhado algum dinheiro quando andou a servir às mesas por terras do tio Sam. Quando regressou a Portugal abriu o seu
próprio restaurante.
Na altura, o restaurante tinha a particularidade de ter duas
zonas bem distintas.
De um lado, no topo da escadaria, um restaurante de 1ª
categoria onde um “cicerone” convidava os clientes a bebericar um Martini, enquanto aguardavam pela mesa de sua preferência, e
os seus pertences eram recolhidos num bengaleiro por uma recepcionista que
curiosamente, ainda hoje trabalha connosco. Um
salão enorme com vista para o rio Tejo. Nas noites de inverno ligava-se a
lareira, e no silêncio cantava-se um fado. Ouvi os meus primeiros fados naquelas
noites temáticas, todas as semanas com artistas diferentes. Nos outros dias, os
jantares eram acompanhados por um pianista que chegou a ser meu
professor de música. O lado glamoroso, onde tudo era pensado ao pormenor, com
requinte e elegância. Chegámos a ter Maria João (essa, a do Jazz) no dia em que o meu irmão foi baptizado, teria eu os meus sete
anos.
Do outro lado, a zona do bar. Um balcão de madeira enorme
que serpenteava toda a sala, estilo "O Galeto". Bancos de pé alto, nos quais ainda
pequena (não que hoje seja muito maior) tinha dificuldade em me sentar, onde a
malta nova fazia refeições mais baratas ou se reunia com os amigos para um café, um bagaço, uma cerveja. Era o
lado onde o rádio estava alto para ouvir o relato, onde a televisão
estava ligada para assistir ao Mundial de 86, onde se pulava e gritava goooooooolo, onde o
cozinheiro Monteiro (exímio benfiquista) vinha fazer as suas célebres imitações
de relatos da bola, onde se ouviam gargalhadas, onde aprendi as primeiras
asneiras, onde passava tardes inteiras a jogar flippers sempre com a mesma moeda,
onde por brincadeira lavava pires e chávenas e, chapinhando na água, me sentia
orgulhosa por estar a ajudar os funcionários, onde os clientes me pegavam ao
colo e me achavam um piadão por ser miúda pequena e gostar de bola, onde tudo
era mais alegre e sincero.
A voz de Rui Tovar faz-me lembrar este meu lado
pé-de-chinelo, as minhas raízes, a minha infância. Hoje e sempre.
Como diria Luís Freitas Lobo, agradeço à minha mãe o ter
nascido, o ter-me feito a gostar de futebol, e ter-me dado a possibilidade de
crescer nestas duas realidades. Agradeço a Rui Tovar o poder reviver estes momentos simplesmente por
ouvir a sua voz.