segunda-feira, outubro 14, 2019

Missão que nunca se dá por terminada

Sexta-feira foi novamente dia de volta pelas pessoas sem-abrigo de Lisboa com a comunidade vida e paz.
Foi uma noite longa, dura. Acabou tarde. Já estava de rastos quando dei a missão por terminada. Se é que se pode dizer que esta missão alguma vez está terminada.
Mas mais do que isso foi uma volta que doeu na alma e me marcou. Reencontrámos um sem-abrigo que andava desaparecido há uns meses. Encontrámo-lo intoxicado, desesperado, mal educado, agressivo. Estive uns 15 minutos à conversa com ele, a levar ralhetes sobre o staff da Santa Casa e sobre as condições miseráveis em que colocam estas pessoas. Segundo ele condições que nem a um cão se oferecem. Tentei explicar que não estou ali a mando da santa casa. Sou uma mera voluntária que dispensa algum do seu tempo. Que estou ali para lhes levar algum conforto, carinho, e comida.
- Comida, chamas a isto comida? Aquele quarto para onde a santa casa me levou que nem casa de banho tinha, chamas àquilo uma casa?
Estava tão revoltado que já só dei por ele a agarrar-me a mão com força, só parou quando eu lhe disse “estás a magoar-me” e ele viu os meus colegas a saírem da carrinha. Confesso que o olhar raivoso e lunático me assustou, mas é entrar na carrinha e seguir caminho.
Mais á frente, encontramos outro SA que nos pede para não nos voltarmos a aproximar da sua tenda, pois tem um cão de combate consigo que nos pode atacar a qualquer momento. Mexe a mão entre a barriga e as calças e diz-nos ser portador de uma 9mm.
É entrar na carrinha e seguir caminho.
Já passava da uma da manhã quando encontrámos o André. 33 anos, 22 de droga, 10 de cadeia. Meigo no trato, olhar triste e cansado. Está cansado da vida de rua e da metadona, a droga substituta que o “estado lhe deu”. Tudo o que quer é uma oportunidade, um emprego, sair da rua. Falamos-lhe do apoio que a Comunidade Vida e Paz lhe pode dar. Tem saudades da mãe e do irmão mais novo, mas reconhece que eles são mais felizes se ele não estiver por perto. Tem pena de já não ser motivo de orgulho para nenhum dos dois e não sabe se alguma vez na vida vai voltar a sê-lo. Quer uma vida, uma família, mulher e filhos. Despede-se de nós com um olhar de esperança, prometendo que na próxima segunda feira, logo pela manhã, vai ao nosso Espaço Aberto ao Diálogo pedir ajuda.
Foi o André quem me fez sentir que valeu a pena ter saído de casa para fazer esta volta. São situações como a do André que me fazem acreditar que ainda há pessoas que vale a pena ajudar. Sim, porque nem todos querem deixar a rua. Mas, basta que um queira. Basta que um consiga, para que tudo isto valha a pena.


4 comentários:

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    1. No meu caso não é profissão, é algum do meu tempo livre que uso como voluntária. Boa semana.

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  2. Coragem! Um relato que nos faz pensar na fragilidade da vida....

    Beijinhos.
    Sandra C.
    bluestrass.blogspot.com

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    1. Há dias em que é preciso coragem, é verdade. Na maior parte das vezes só precisamos de tempo e paciência :-)

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