(Nota: Ao contrário da maioria dos textos deste blog que relatam experiências e vivências da autora, o texto que se segue é puramente ficcional.)
O Verão ainda cheira à minha avó. Era sempre na casa de campo da avó Catarina que eu passava as férias de Verão.
O Verão ainda cheira à minha avó. Era sempre na casa de campo da avó Catarina que eu passava as férias de Verão.
Apesar de viver numa casa isolada, a cerca de 20 km da aldeia mais próxima, a
avó gostava de se arranjar como se estivesse à espera de visita: saia travada,
camisa de seda, casaco de malha.
A avó já há muito que não
trabalhava e, por isso entretinha-se a encher-me a barriga de mimos. Bem cedo,
na cozinha cheirava a pão quente e café acabadinho de fazer. A jarra que a
minha mãe lhe ofereceu por alturas de um aniversário, compunha a mesa do
pequeno-almoço com malmequeres e papoilas acabadas de colher no jardim em
frente ao alpendre.
Lembro-me que o cheiro a jasmim
vinha essencialmente do seu carrapito enrolado com perícia, grisalho, outrora
cor de terra. O rosto rugoso mas saudável, próprio dos seus estimados oitenta
anos, era de sorriso fácil. A aguadilha dos olhos grandes e verdes escondia-se
por detrás dos óculos minúsculos assentes na ponta de um nariz arrebitado. Dos
lábios finos e bem definidos, apesar de antediluvianos, saía uma voz bondosa e
humilde mas activa, de cada vez que me contava uma história ao deitar.
Os passos eram curtos mas
convictos, passos de quem caminha de cabeça erguida. Sempre lhe admirei a
aliança apertada nos dedos curtos e roliços. A avó enviuvou cedo, mas nunca
permitiu entregar-se aos devaneios de uma nova paixão. Fez o avô feliz durante
toda uma vida e isso para si era o bastante.
- “52 anos de vida que partilhei com o teu avô. O truque está em fazê-lo acreditar que é
ele quem manda”, dizia-me.
E deixava-me sempre num mutismo hilariante quando
acrescentava enigmas como “A vida não é aquilo que queremos, mas devemos vivê-la com a imaginamos”.
Hoje, no regresso do funeral da
avó, precisei de voltar à sua casa, de me recolher nos seus pertences. Talvez
agora, com a sua partida, conseguisse finalmente entrar no misterioso sótão de sua casa. Durante alguns segundos ponderei
se deveria invadir aquele espaço.
Na infância, sempre que nas férias de verão eu e o primo João nos juntávamos na casa da avó, tínhamos ideias assustadoras e alucinantes acerca do que ela guardaria naquele espaço sombrio e proibido. Tantas vezes tentámos que um distraísse a avó enquanto o outro procurava a chave, mas o ranger do soalho nos denunciou e por pouco não apanhámos uma valente vassourada.
A minha indecisão durou apenas segundos, pois a curiosidade era avassaladora, e eu precisava mais do que nunca de sentir o seu cheiro, de estar perto do que era seu… Entrei!
Nada tinha de sombrio. Tinha uma
janela, a luz era fecunda e quente. Não era um sótão vulgar nem
poeirento, como seria de julgar. Estava limpo, arrumado, e os pertences da avó
encaixotados ordenadamente como se soubesse que iria morrer no dia seguinte e
não quisesse dar o trabalho a ninguém de o arrumar.
Sentia no ar o seu
perfume, como se ainda ontem a avó ali tivesse estado. Nos meandros das
memórias da avó uma edição de poemas de Fernando Pessoa. Folheei-o: apontamentos, notas, frases sublinhadas, textos lidos e relidos. A avó adorava
Pessoa, e fazia questão de o partilhar comigo como se fossem palavras sagradas.
Numa caixa pequena, enlaçada por
uma fita de veludo escarlate, um velho álbum de fotografias da avó, do avô e da
minha mãe com apenas alguns meses de vida. No meio de duas páginas, um
retrato solto, diferente dos demais, retalhado e amarelado pelo tempo e nele, um soldado…um desconhecido de
uniforme. Nas costas da foto estava
escrito: “Will be back as soon as this
insane war is over. Forever yours, Henry”.
Não demorei muito a perceber que
a figura daquela foto teria sido alguém importante na vida da avó. Mas quem
seria?
Sabia que a avó tinha vivido uns
anos em Londres, quando o seu pai aceitou um lugar na embaixada de Portugal,
teria ela apenas três anos. Sabia que o meu apelido Murray era fruto do seu
casamento com o avô Peter. Sabia que os conhecimentos da língua adquiridos por
terras de sua majestade lhe permitiram leccionar inglês anos mais tarde quando
se refugiou da guerra em Portugal. Mas quem seria este Henry? Algum tio-avô de quem nunca ouvi falar?
Para além da intrigante foto,
dentro de um pequeno baú estava um mapa, rotas percorridas traçadas a vermelho
e vários bilhetes de comboio obliterados. Era-me
difícil imaginar que a doce e pacata avó das minhas férias de verão na casa de
campo tivesse percorrido a europa de comboio.
Não sei ao certo quanto tempo
passei dentro daquele sótão, mas precisava de devorar de uma só vez toda a
informação disponível, a história da vida de alguém que me foi tão próximo, e
acerca de quem afinal pouco sabia.
Durante anos, tive a sensação de
que havia algo mais acerca da avó Catarina, mais do que uma mulher apaixonada
pela sua profissão, mais do que a esposa dedicada, mais do que a mãe
preocupada, mais do que a avó extremamente carinhosa. Havia algo de misterioso
e interessante, algo que eu não conseguia explicar por palavras, por vezes nem
a mim mesmo. Era um certo borbulhar na barriga que se manifestava sempre que
partilhava comigo uma das suas sábias epifanias “A vida é como um trapézio sem
rede, passamos a vida a tentar não cair dos malabarismos que fazemos dela.”
Eram estas expressões que me faziam catalogá-la de super-heroína: sem fato
especial, sem super poderes, sem precisar de salvar o mundo, heroína apenas
porque me inspirava.
A certa altura deparei-me com um
envelope cujo remetente indicava Lucy Barnes e o destinatário Kathy Pai s (Kathy diminutivo de Catarina, dirigida à minha avó, deduzi). “Talvez não devesse lê-la” pensei, mas o
impulso foi mais forte do que a razão. Abri a carta e comecei a ler:
“London, October, 9th,
1940,
Dear Kathy,
I miss you terribly.
London has been the closest thing to hell since you´ve departed. This war is
leading us to complete misery and desperation. Hope to find you both in good
health, and that Portugal has received you with open arms. Unfortunatelly, we
haven´t heard from Henry again, my dear. No letters, no news, not anything. I´m
sure that Peter will take good care of you and the baby. Please write as soon
as possible.
Affectionately.
Lucy Barnes”.
-Henry, novamente?! Preciso de saber
mais sobre este homem, mas não me parece boa ideia envolver nisto a minha mãe, pelo menos por enquanto.
Num instante voltei a guardar
tudo o que tinha encontrado naquele sótão, arrumei o baú que agora me parecia
mais pesado que nunca, peguei na caixa da fita escarlate e saí.
Lá fora chovia copiosamente ou
como diria a avó “it was raining dogs and
cats”. Sempre adorei os anglicismos que espontaneamente lhe surgiam nas conversas.
Dei uma corrida até ao carro e
dirigi-me a casa. Assim que pus a chave à porta, apressei-me para o computador
da sala. Tinha um nome (Lucy Barnes) e uma morada, nada mais. Teria de ser o
bastante.
Umas duas horas de pesquisa na
internet e uns quantos cigarros mais tarde, finalmente surge uma ligação para a
dita morada e para o apelido Barnes no My
heritage.com, e mais uma vez dei graças a Tim Berners-Lee
pela World Wide Web.
“A esperança é o
sonho do homem acordado”, e por isso decidi enviar um e-mail. Não tinha nada a
perder. Apresentei-me como neto de Catarina Mello de Pais Murray, uma
jovem portuguesa residente em Londres por alturas da II Grande Guerra. Perguntei
se nessa família existia ou tinha existido alguém de nome Lucy Barnes
que a pudesse conhecer. A resposta veio uma eternidade depois, mas com palavras
de alento. Jessica Barnes, tinha uma avó Lucy Barnes, ainda viva, e que se
recordava de uma amiga e colega de escola a quem chamava Kathy Pai s.
Não sabia se tinha
encontrado a pessoa certa, mas todos os meus sentidos me diziam que estava “on the right track”. Expliquei que a
avó tinha morrido recentemente e que para mim era muito importante encontrar-me
pessoalmente com Lucy. Desta vez a resposta foi quase imediata, curta e
eficente: “Granny would be delighted”.
No fim-de-semana
seguinte estava num avião a caminho de Londres, nervoso e expectante. Jessica
teve a amabilidade de me ir buscar a Heathrow, e pelo que percebi estava tão
empolgada quanto eu. Não sabia uma palavra de português, mas já tinha ouvido
falar do nosso sol, das praias, da simpatia das pessoas, e também ela estava
ansiosa por saber mais sobre aquela amiga de infância de que a sua avó tanto
falava. Apesar dos seus 30 anos, Jessica tinha um ar menineiro e um sorriso
abundante. Simpatizei imediatamente com ela, o que me deixou bastante
descontraído e à vontade.
Lucy aguardava-me
num longo sofá de tecido beige, com as pernas cobertas por uma manta
enxadrezada e um tabuleiro de chá na mesa de apoio. Pediu-me que me sentasse a seu
lado, abraçou-me o rosto com as duas mãos, fixou-me o olhar e disse-me “ you have your grandmother´s eyes. It is
so nice to meet you, dear”. O seu cabelo era branco, cheio e suavemente
ondulado como um floco de neve, o seu rosto era gentil e os gestos lentos.
Ofereceu-me uma
chávena de chá e disse-me “ well dear,
how can I be of assistance?” Mostrei-lhe a foto do homem de uniforme e num
segundo os seus olhos tremeram e um sorriso escapuliu. Percebi imediatamente
que o reconhecia, por isso perguntei-lhe afoitamente “Who is he? What was the relation between
this soldier and my grandmother?”.
Lucy inspirou
languidamente e lançou-me numa espiral de acontecimentos. O meu tempo parou. Na
verdade, foi como se o mundo inteiro tivesse parado para escutar. Naquele momento nada
era mais relevante do que as palavras de Lucy.
Através das suas
saudosas palavras fiquei a saber que Lucy e a minha avó Catarina, tinham sido
amigas de infância, as melhores amigas, e igualmente colegas de escola de Peter
Murray (meu avô). Andavam sempre os três juntos partilhando sorrisos,
brincadeiras, segredos, angústias. Eram inseparáveis.
Naquele tempo,
antes da guerra, visto serem de famílias abastadas e o pai de Kathy ser
embaixador de Portugal em Londres, era frequente a presença de figuras da alta
sociedade britânica em casa dos meus bisavós em festas de aniversário, bailes
de solidariedade e angariação de fundos, etc.
Todavia, não era
nessas “absolutely boring parties”
que Kathy se sentia bem. O seu espírito rebelde era mais dado a conhecer o
mundo de mochila às costas. Acabar os seus dias na opulência de um qualquer
palácio londrino herdado da família, não era o destino que Kathy vislumbrasse.
Ela queria construir o seu próprio futuro e não herdá-lo. Tinha sido criada num
mundo de intelectualidade, cultura, de princípios e bons costumes, mas era
demasiado independente para viver a vida a puxar de galões que não fossem os
seus.
Foi por isso que,
quando entrou para a faculdade, e contra a vontade dos pais, arranjou um emprego.
Trabalhou num restaurante na Blackfriars Road e foi aí que conheceu Henry, um
rapaz meigo e pouco dado a devaneios que se tornou cliente assíduo do
restaurante assim que os seus olhos pousaram em Kathy. Era operário fabril e
voluntário da Red Cross, para onde arrastou Kathy num piscar de olhos. Ele
representava a liberdade que ela tanto ansiava.
Apesar de Kathy adorar
Peter “with all her heart”, apesar de
ao seu eterno e inseparável amigo dever horas sem fim de sorrisos e
cumplicidade, esse amor era incomparável à paixão frenética e desmesurada que
nutria por Henry.
Kathy viveu meses
de euforia, até ao dia em que os seus pais tomaram conhecimento desse relacionamento. Não
era este o príncipe a quem os seus pais queriam entregar a filha tecida nas
malhas da fina flor britânica. Henry era o oposto de tudo o que tinha sido
planeado para Kathy. A tensão em casa dos pais subiu de tom, pois não havia dia
algum que Henry não fosse motivo de discussão. O ambiente tornou-se infernal.
Em 39 a guerra
eclodiu e em Março do ano seguinte Henry foi chamado a combater. Duas semanas
depois da sua partida para as linhas da frente, Kathy descobriu que estava
grávida. Os seus pais insistiam para que abortasse ou que deixasse a casa de
família, tamanha era a vergonha. A minha avó recusou-se. Aquela criança era a
possibilidade de dar sentido e continuidade àquele amor incompreendido e rejeitado, era tudo o que lhe restava.
Todavia, de Henry
nunca mais teve notícias, nunca chegando sequer a ter a oportunidade de partilhar
a alegria pela vinda daquele filho. Independentemente disso, todos os lugares recônditos do seu ser lhe
diziam que Henry iria voltar e que, quando isso acontecesse, ela e o bébé
estariam à sua espera.
A 15 de Setembro
de 1940 Londres foi alvo do bombardeamento mais aterrador de que há memória, 57
noites consecutivas de um autêntico inferno, e Kathy tinha agora um filho no
ventre que desejava que vingasse, mais do que qualquer outra coisa na vida. Na
casa dos seus pais há muito que não era bem-vinda. Tinha de partir para um
lugar seguro.
A dupla nacionalidade
de Kathy poderia ser a sua salvação nesse momento. Portugal tinha uma posição
neutra na guerra e seria com certeza um óptimo refúgio. Lucy e Peter
encarregar-se-iam de dizer a Henry onde ela se encontrava e, assim que a guerra
terminasse, poderiam reencontrar-se.
No dia da sua
partida, Peter surpreendeu tudo e todos dizendo que não podia deixar de a
acompanhar. Apesar de habituada a viajar sozinha, esta não seria uma viagem de
recreio, mas um novo começo num país que lhe era estranho e com a responsabilidade
acrescida de estar prestes a dar vida a uma criança. Kathy respirou de alívio,
a companhia de Peter era obviamente bem-vinda.
A 4 de Janeiro de 1941
nascia a minha mãe, os meus avós casaram no mesmo dia.
- Mas como? Porque
é que a minha avó não esperou por Henry?
-“I´m afraid that was my fault, dear. We´d heard some rumours that
Henry was missing in action, so I sent a letter to your grandmother telling her
that Henry was killed. You see, it took great courage for Peter to take care of
Kathy and the baby. He gave up his family, his job, his country, his life for
her. He had always loved her. He would do anything to
make her happy, and indeed he did.”
Fiquei em estado de choque! Como poderia
Lucy tomar as rédeas dos destinos destas três pessoas?
- “ They
were about to become a family, the baby was coming soon, and they were happy in
Portugal. If indeed Henry was still alive, he would only be in their way. I
just could not bring myself to destroy Kathy and Peter´s future. It wasn´t fair!”
Lucy contou-me
ainda que uns anos mais tarde se reencontrou com Henry. As únicas palavras que
conseguiu proferir foi que Kathy o julgava morto e que tinha refeito a sua
vida. Henry nunca soube que Kathy e Peter tinham casado, nem tão pouco soube
que Kathy tinha dado à luz uma menina, a sua menina, minha mãe.
A decisão de Lucy
tinha sido certamente a decisão mais dolorosa da sua vida.
Já de regresso a
Portugal, deparei-me com um dilema semelhante. Dar ou não a conhecer à minha mãe
tudo aquilo que acabara de descobrir: as suas origens, quem foi o seu
verdadeiro pai…
Facilitou-me a
tomada de decisão acreditar que o avô tinha sido o equilíbrio no trapézio da vida
da minha avó. Em jeito de agradecimento, ela tenha vivido quase exclusivamente
para o fazer feliz.
Por vezes a concretização suprema de uma vida está nos segredos que guardamos, naquilo que fica por dizer.
Por vezes há pessoas que trazem beleza mesmo às coisas que não nasceram para ser belas.
Por vezes há pessoas que trazem beleza mesmo às coisas que não nasceram para ser belas.
Texto fantástico miúda . Continua tens muito jeito para a coisa. :)
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