Já não é novidade para quem acompanha assiduamente o blog e a respectiva página de facebook, que eu sou voluntária da Comunidade Vida e Paz, integrando uma das equipas de rua pelos sem-abrigo de Lisboa. Já aqui partilhei o relato da minha primeira vez, e de vez em quando vou partilhando histórias vividas na Volta.
A nossa Missão é simples: ajudá-los a sair da rua.
Mas não é assim tão fácil. Muitos já não acreditam, muitos já não querem, muitos têm vícios mais fortes que a vontade de viver, e por isso mais do que ir para a rua distribuir comida há que lidar com eles, conversar, ouvir as suas histórias, perceber até onde estão dispostos a ir para sair da rua e largar uma vida que, como eles muitas vezes, dizem "não interessa a ninguém".
É nessa ligação que se cria, no reconhecer os nossos rostos, no perguntarem por este ou aquele voluntário com quem falaram ou simpatizaram, no saberem os nossos nomes e nós os deles, no desabafarem connosco, foi numa dessas noites que eu fiquei a saber que o Sr. Agripino iria voltar para a rua.
O Sr. Agripino apoiava-se nas refeições que a Comunidade e outras associações lhe davam, mas não dormia na rua. Tinha um cantinho num prédio abandonado onde se refugiava todas as noites. Não era uma casa, mas funcionava como tal. Pelo menos tinha onde guardar os seus parcos pertences e tinha um tecto.
Depois de vários anos a viver num prédio abandonado, pediram-lhe que o abandonasse uma vez que o prédio está para ser demolido.
Numa noite de volta, aproxima-se de mim e diz-me cabisbaixo: "Vou voltar para a rua! Não tenho para onde ir."
Aquilo caiu-me que nem um balde de água fria. Fui para casa furiosa e mal-disposta com a situação. Revoltada até. Não com ninguém em particular, mas com a situação em si. Dormi mal e andei vários dias a pensar naquilo. Um homem com mais de 60 anos a viver na rua, outra vez.
Por portas e travessas, soube de uma pessoa com uma quinta algures no algarve e que precisava de quem tratasse da terra e dos animais. E na minha cabeça fez-se luz. Aquilo fazia-me sentido: um precisa de trabalho e uma casa, o outro precisa de quem não se importe de sujar as mãos e trabalhar como poucos querem e sabem. Só faltava saber se ambos estariam com vontade de aceitar o desafio: um de deixar Lisboa e partir para parte incerta atrás de uma oportunidade, o outro de dar trabalho a um desconhecido.
Falei com ambos!
Um disse-me:
- Não tenho nada que me prenda aqui. Aceito sim. Quando é que é para ir?
e o outro:
- Se ele não se importar de trabalhar, ele que venha. Terá trabalho, casa, comida e um ordenado ao fim do mês. O futuro logo se vê.
E assim se fez magia!
Falei com o restante pessoal da equipa e entre todos oferecemos o bilhete de combóio ao Sr. Agripino até Albufeira/Ferreiras. Só ida. Se tudo correr bem, não precisará de bilhete de volta.
O Sr. Agripino partiu para o Algarve no dia 2 de Maio, já lá vão 4 meses. Sempre que vou ao algarve, e sempre que posso vou à quinta visitá-lo. Oferece-me cebolas, feijão verde, batata doce. Está feliz e não pensa em voltar para Lisboa, a não ser para matar saudades da equipa da Comunidade Vida e Paz.
Fala connosco ao telefone de cada vez que a equipa se junta para fazer a Volta, e das últimas vezes que falou connosco transmitiu-nos que um dia ainda vai ser voluntário da Comunidade Vida e Paz. Bolas, que coisa bonita!
Este recente capítulo da vida do Sr. Agripino está a ser das coisas mais emocionantes e bonitas em que participei em toda a minha vida.
Nota:
Agradeço à minha amiga Maria que me apresentou a Comunidade Vida e Paz, à CVP pela entrega a reconstruir sentidos de vida e por me permitir participar, à equipa maravilhosa da Volta de Sexta-feira, ao proprietário da quinta que deu uma oportunidade única ao Sr. Agripino, e à minha família por saberem o quanto é importante para mim fazer parte de tudo deste projecto (principalmente ao Limoneiro por compreender que eu já não sei viver sem isto).
Sou uma sortuda!