Somos nove na carrinha, incluindo o motorista. Uma das mais antigas na equipa é a última a entrar e dispara as novidades:
- O Sr. Manel afinal não morreu, foi internado no São José no dia 29, depois de lá termos estado a 26.
Ouvem-se suspiros de alívio, e desabafos: "ainda bem, ele estava tão mal, coitado!"
- Ah, é verdade! E a "avó" hoje não pode vir.
Não sei quem é o Sr. Manel, não sei quem é a "avó", é a minha primeira vez na volta. Remeto-me ao silêncio, ouvidos e olhos bem atentos, quero apanhar tudo, não quero perder nada.
Alguém sugere que, de vez em quando, seria melhor fazer a volta ao contrário, pois fazendo sempre da mesma forma os últimos são sempre prejudicados, a comida já é pouca e as roupas já estão escolhidas.
Da última vez que foram, enganaram-se no caminho e até calhou bem. Chegaram mais tarde à Rua Castilho e apanharam imensos. É importante saber onde eles param e onde dormem. "Nós é que temos de os encontrar".
Na Castilho, estão de facto imensos. E aproximam-se assim que a carrinha estaciona. Começa a distribuição, com calma, com ordem, com educação, com humildade. Eles sabem que chega para todos. Aproximam-se de mim e perguntam-me:
- arranja-me uma camisolinha de gola alta quentinha? tem estado tanto frio". E umas calças? E uma peúgas? E .... E.... E...
- Veja lá se estas lhe servem. Parecia eu que estava a vender na feira.
- O que é que a menina acha?
- Acho que sim, que lhe hão-de ficar bem. Fique com essas!
- Obrigada menina, saúde! Muita saúde. Boa noite
No cinema São Jorge estão dois. Ofereci-me para ser eu a entregar o saco com o pão e o iogurte. Vestem-me o colete. Aproximei-me e perguntei: "Somos da Comunidade Vida e Paz, posso deixar-lhe um saquinho?" E levantando as mãos no ar, apalpando no vazio diz-me "deixe dois, se faz favor", continua procurando o saco que apresento à frente dos seus olhos, não o vê, não me vê. Toco-lhe e digo-lhe "deixe estar, eu ponho aqui ao seu lado".
Subimos à Praça da Alegria, e voltamos a parar. Lá está o Sr. António, desta vez não quer comida, só quis falar. Açoreano, alguns 50 anos, todo ele cheira a vinho. No meio do seu dialecto apanho algumas frases soltas. "Não quero comida, tenho a mochila cheia, quero trabalho, devo 20 mil euros às finanças, quero trabalho".
Duas das colegas voltam da entrega naquela paragem e actualizam o resto do pessoal "o senhor daqui já tem quarto. A segurança social arranjou-lhe onde ficar, agora diz que precisa de lençóis. Na próxima volta havemos de lhe trazer lençóis."
Junto ao edifício da PT, mais uma paragem. No sítio onde paramos não se vê ninguém, mas elas (as mais antigas) sabem que eles estão lá e que ainda são muitos. Ofereço-me para fazer a entrega. "Espera, não vás sozinha!"
A esta hora da noite e com o frio a apertar, nesta paragem já não se veem rostos, já não se trocam palavras. Estão a dormir! Cobertos até cima, apenas se veem vultos. Dois deles aninhados debaixo de um cadeeiro de rua, outros dois debaixo das arcadas do edifício, e outros dois mais além. "Olha, aquele parece o Sr. Hermenegildo. Mas ele não tinha ido para a instituição?... já cá está outra vez..."
Junto ao edifício do antigo hospital particular, por baixo das arcadas está a barraca montada com colchão e tudo. Cheiro nauseabundo. Mais dois que compartilham um espaço. Paro para pensar "aqui nasceu a minha filha".
Chegamos ao Saldanha, e pela primeira vez encontro mulheres de rua. "Não me arranja um cachecol e uma camisolinha para a minha netinha? E uma camisola interior? E shampoo, tem?" Logo aparece outra: "Para que queres tu tanta roupa? Vais vender?" E diz para mim, "Esta é uma mentirosa."
Penso para os meus botões: "porque é que as mulheres têm de ser assim umas para as outras, chiça penico? Até na miséria."
Aproxima-se a "senhora do multibanco". Da última vez, foram dar com ela a dormir dentro de um daqueles espaços fechados onde levantamos dinheiro. Precisa de roupa, já não temos nada para lhe dar. Estamos no fim da volta.
Num qualquer passeio por Lisboa, estas são as pessoas que evitamos encontrar, das quais desviamos o olhar, cartões de visita indesejados. Os voluntários da Comunidade Vida e Paz procuram-nos, querem saber onde estão, o seu nome, o que precisam.
Este é o relato da minha primeira vez na volta com a Comunidade. Não é um passeio engraçado, mas foi bom. Quero repetir. Quero repetir esta sensação de desprendimento, de dar sem olhar para trás, de dar e ver brilhos nos olhos, e educação, e respeito, sem juízos de valor.
Vê-se Lisboa com outros olhos. Vê-se Lisboa, as suas ruas e as gentes que nelas dormem, não com repúdio, mas com o coração!
Obrigada Maria!